Os “brasis” dentro do Brasil que não se quer ver
A revolta que nos levou a investigar as complexidades por trás dos altos números de crianças que se tornam mães todos os anos e não tiveram acesso ao aborto legal

O projeto Meninas Mães nasce do nosso desejo de denunciar e dar visibilidade ao alto número de meninas que se tornam mães no Brasil ainda hoje: cerca de 20 mil por ano, 57 por dia (considerando apenas a faixa etária entre 10 e 14 anos). Uma menina a cada meia hora perde a infância. São crianças que estão sendo, em última medida, obrigadas a levar gestações adiante, mesmo existindo o direito ao aborto legal no nosso país quando a gravidez é fruto de estupro (e toda relação sexual com criança menor de 14 anos no Brasil é violência sexual, por lei).
Consideramos que as meninas foram obrigadas a parir, já que várias falhas as levaram a esse destino cruel e impactante para a infância. Por que existe uma banalização da gravidez infantil, inclusive com instituições que impedem o aborto legal e forçam essa “maternidade”? Em um país em que o povo vai às ruas pra gritar que ‘Criança Não é Mãe’, enquanto os legislativos (em seus diferentes níveis) tentam restringir o direito dessas crianças de não terem suas infâncias interrompidas.
A gente queria entender a fundo e mostrar tudo que acontece de errado no caminho para que essas crianças engravidem e se tornem “mães”. Para isso, mergulhamos no assunto durante 10 meses (de outubro de 2024 a julho de 2025): levantando e cruzando dados, analisando o cenário e conversando com quem mais importa: as meninas e suas famílias.
Lançamos uma página dedicada ao conteúdo “Meninas Mães” no site d’AzMina, com mapas dinâmicos que mostram que os serviços de aborto legal no Brasil estão a muitos quilômetros de distância das crianças que engravidam como resultado de estupro de vulnerável. Nossa investigação resultou em reportagens aprofundadas com entrevistas, dados e imagens.
E você pode apoiar nosso trabalho e baixar todo o material do Meninas Mães em PDF para utilizar em outras frentes de atuação. Basta preencher o formulário e o link para download será disponibilizado gratuitamente. Esperamos que esse material possa guiar discussões em sala de aula, grupos de estudo ou outros espaços educativos e de debates.
ESCOLAS ONDE É COMUM TER ADOLESCENTES COM BEBÊS EM SALA DE AULA
A repórter Schirlei Alves e a fotógrafa e cinegrafista Deyse Cruz-Noronha foram até uma das cidades com as maiores taxas de fecundidade entre meninas de 10 a 14 anos: Assis Brasil, no Acre. Lá, conheceram histórias de meninas que se tornaram mães ainda na infância, vítimas de uma combinação de violência sexual, desinformação, descaso institucional e silêncio social. O mergulho no território mostra como esse cenário está longe dos olhos do poder público e das políticas que deveriam proteger crianças e adolescentes.
Assis Brasil fica na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia. Para chegar lá, no início de abril, percorremos cerca de oito horas de ônibus desde Rio Branco, capital do Acre. Seguimos pela BR-317, a chamada estrada do Pacífico, que é bastante precarizada.
Encontramos uma realidade que, infelizmente, não é nova. Embora nunca tivéssemos viajado antes ao Acre, há muito em comum entre os interiores brasileiros. São muitos Brasis dentro do Brasil — que boa parte dos brasileiros desconhece.
Escolhemos ir a esse município porque conseguimos o suporte de uma liderança local, que é conselheira tutelar. Visitamos comunidades rurais, postos de saúde e conversamos com diferentes profissionais. E também em escolas, onde encontramos uma triste realidade em que alunos e professores acolhem e acabam normalizando a presença de bebês em sala de aula, acompanhando suas mães.
Em diversas regiões remotas por onde passamos, como jornalistas, encontramos pessoas determinadas a transformar a realidade onde vivem. Sempre tem alguém que “move montanhas”, que faz a diferença, que é estrela e referência na sua comunidade. Mas, como já diz o velho ditado, uma andorinha só não faz verão.
O RETRATO DO PROBLEMA EM QUATRO REPORTAGENS
Apresentamos um panorama nacional da realidade dessas garotas e um retrato geográfico sobre as principais regiões brasileiras com as taxas mais elevadas de fecundidade entre meninas que têm entre 10 e 14 anos. Embora os índices de maternidade infantil tenham diminuído em algumas cidades grandes, eles continuam elevados em regiões rurais e isoladas do país. A reportagem da jornalista Lu Belin mostra como desigualdades territoriais e a escassez de unidades de saúde que realizam o aborto legal dificultam ainda mais o acesso a esse direito fora das capitas e metrópoles.
A jornalista indígena Juliana Lourenço volta o foco para as meninas indígenas, que vivem nas regiões com as maiores taxas de fecundidade. A reportagem dela revela como o racismo, o apagamento cultural e a ausência de políticas específicas contribuem para perpetuar o ciclo de violência e abandono de meninas indígenas.
Ao visibilizar essas histórias que, de maneiras distintas, afetam crianças e adolescentes de todo o país, o projeto Meninas Mães reafirma a urgência de políticas públicas que respeitem seus direitos, suas infâncias e suas vidas. Buscamos, sobretudo, discutir quais são as lacunas e as falhas no percurso entre as meninas que gestam e o acesso ao aborto legal.
A fragilidade dos dados e a falta de informação confiável e atualizada sobre os hospitais que realmente fazem a interrupção da gravidez foram um grande desafio para nossa equipe na construção dos mapas e conteúdos desse projeto especial. Imaginem para quem está necessitando encontrar o serviço de aborto, que tem que viajar horas para acabar não sendo atendida, ou ser coagida, desinformada e tantos absurdos que acontecem nesse caminho. E estamos falando de algo que era pra ser rápido e simples, com alternativas como o aborto por telemedicina e medicamentoso mais expandidas nos centros de saúde, sendo também realizado por profissionais da enfermagem.
VIOLAÇÃO DE DIREITOS DESDE CEDO
As meninas mães que entrevistamos em Assis Brasil vivem em condições de vulnerabilidade e enfrentam, todos os dias, uma série de desafios. A violação de direitos começa cedo, já na primeira infância, com a insegurança alimentar. Depois, vem o afastamento da escola e a exposição a violências sexuais.
A elas, muitas vezes, cabe o trabalho de cuidar dos irmãos menores, para que os pais – ou, com frequência, a mãe solo – possam sair para trabalhar. As responsabilidades da vida adulta chegam cedo demais. E isso se torna natural. Não que devesse ser naturalizado, mas… que outra alternativa elas têm? Quais as perspectivas, quando a renda familiar, muitas vezes, depende exclusivamente de benefícios sociais?
A gravidez precoce acaba fazendo parte desse pacote de ausências: não há uma alimentação adequada, tampouco educação escolar de qualidade, ou oportunidades de trabalho e de entrar em uma universidade. Falta acesso, também, à informação e ao direito de decidir sobre o próprio corpo. O encaminhamento mais comum encontrado ao descobrir a gestação acaba sendo para fazer o pré-natal.
POR UMA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA LIVRE DE VIOLÊNCIAS
Para que as coisas realmente funcionem, é preciso um olhar atento do poder público. E isso não pode recair apenas sobre a prefeitura local, que, quando não rema com recursos escassos, está sob domínio de monopólios familiares pouco interessados em promover mudanças.
O fato é que as políticas públicas não chegam com a mesma força em todos os lugares – e muito menos de forma articulada entre os órgãos que precisam atuar em conjunto. Quanto mais distante e de mais difícil acesso for o município, menos presença do Estado existe ali.
No caso do aborto legal, um direito que sofre ataques constantes de movimentos conservadores, religiosos e da extrema-direita política no Brasil, fazer valer o direito se torna ainda mais desafiador.
O aborto legal não é a solução. É apenas um dos muitos direitos aos quais essas meninas não têm acesso. O enfrentamento ao abuso sexual, a prevenção da gravidez precoce e, mais do que isso, o direito de viver uma infância e uma adolescência livres de violências, passa por acesso à educação, à saúde, à segurança alimentar, à proteção social.
Falar em aborto legal, nesse contexto, é afirmar um direito básico diante de tantas violações. Quando tudo o mais falha, esse mínimo precisa ser assegurado. Não se trata de escolhas em condições ideais – é questão de sobrevivência, justiça e dignidade. E de lembrar o básico, que nosso país parece andar esquecendo: gravidez e maternidade não são coisas de criança.
VAMOS MUDAR ESSA REALIDADE?
Precisamos proteger e acolher nossas crianças, e chamamos nosso público para fazer parte dessa missão. O Instituto AzMina pauta direitos sexuais e reprodutivos há 10 anos, desde sua criação. Fazemos vários projetos e reportagens sobre aborto ao longo dos anos, em busca de um mundo mais justo para todas as pessoas.
Acesse nossa plataforma que reúne dados, pequisas e informações úteis sobre direitos reprodutivos no Brasil: https://abortonobrasil.info/
Aderimos à campanha #CriançaNãoÉMãe e fortalecemos a rede de defesa de mulheres, meninas e pessoas com útero. A campanha Criança Não é Mãe é um espaço de ação política com o objetivo de mudar a realidade denunciada neste projeto. Saiba mais e faça parte, acesse: criancanaoemae.org.br
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