Garantir o direito ao aborto é um dos requisitos para que possamos considerar nosso país plenamente democrático. Dessa compreensão nasceu o projeto Aborto e Democracia, uma parceria da Revista AzMina com a ARTIGO 19 Brasil e América do Sul. Em uma série de reportagens, investigamos as barreiras de acesso aos direitos reprodutivos, especialmente o aborto legal, nas cinco regiões do Brasil, e aprofundamos o olhar sobre a realidade dos serviços de saúde demonstrada no Mapa do Aborto Legal, que acaba de ser atualizado pela ARTIGO 19.
Enquanto o mapa interativo apresenta os hospitais que realizam o aborto legal no Brasil, as reportagens, lançadas a cada semana, mostram que a presença de unidades de saúde habilitadas não garante o acesso ao procedimento.
Os conteúdos do projeto Aborto e Democracia foram coordenados pela equipe AzMina e produzidos juntamente com outros veículos feministas de diferentes regiões do país: Paraíba Feminina, Portal Catarinas e Nós, Mulheres da Periferia.
Falta de informação, profissionais despreparados, que colocam suas crenças acima dos deveres, redes de atendimento desestruturadas e alegação de objeção de consciência. Esses são alguns dos problemas que obrigaram meninas, mulheres e pessoas com útero que atendiam aos requisitos para o aborto legal — permitido em casos de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia fetal — a levar a gestação até o final.
Ameaças de retrocessos nos últimos anos
Três anos se passaram desde a última atualização do Mapa do Aborto Legal, período no qual outros países da América Latina avançaram na descriminalização do aborto e o Brasil viveu várias ameaças de retrocessos. Algumas regiões sofreram perdas importantes no atendimento à população, como o Sudeste. Sede do primeiro serviço de aborto legal do país, a cidade de São Paulo agora ignora decisões judiciais e mantém suspenso o atendimento no único hospital que realizava o procedimento em gestações acima de 22 semanas.
As dificuldades se repetem de uma ponta a outra do país, mas assumem diferentes nuances a depender do porte da cidade e da existência de um serviço de aborto legal em funcionamento nas redondezas. No Norte, por exemplo, às vezes é preciso até usar barco para chegar a um hospital.
A região Norte também chama atenção por concentrar sete dos dez municípios brasileiros com maior taxa de fecundidade entre meninas de 10 a 14 anos. Crianças vítimas de estupro de vulnerável obrigadas a parir outras crianças. AzMina investigou mais profundamente isso no projeto Meninas Mães.
Informação para derrubar barreiras
Compreender o estigma em torno do aborto legal e saber onde acessar o serviço é fundamental para derrubar as barreiras que tantas meninas, mulheres e pessoas com útero ainda encontram. Daí a importância da série de reportagens aliada ao Mapa do Aborto Legal, que chega à sua quarta atualização, desde o lançamento em 2019.
Primeira ferramenta a mapear os hospitais do SUS habilitados para realizar o aborto legal no Brasil, o Mapa do Aborto Legal é resultado de uma extensa pesquisa desenvolvida pela ARTIGO 19 Brasil e América do Sul. A organização checa e cruza dados públicos sobre os serviços de saúde listados para oferecer o aborto legal, buscando compreender as brechas no oferecimento de informações pelo poder público.
Desde sua primeira edição, a ferramenta passou por outras três atualizações: em 2020, revelando os impactos da pandemia sobre a rede de acolhimento a pessoas que necessitavam do aborto legal; em 2022, com destaque para a ausência de informações de qualidade e a disseminação intencional de conteúdos falsos em materiais oficiais.
Em 2025, o Mapa foi construído com uma nova metodologia. Um dos principais desafios para mapear os hospitais aptos a realizarem a interrupção legal da gestação foi a grave falta de padronização nas bases de dados públicas das unidades de saúde.
As informações disponíveis em diferentes sistemas oficiais não coincidem entre si, o que revela inconsistências e dificulta o acesso a dados confiáveis sobre a rede de atendimento. Nesta atualização, a equipe da ARTIGO 19 verificou que há uma incompatibilidade gigante entre bases de dados, inclusive entre o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e o Sistema de Informações Hospitalares do DATASUS.
Na combinação entre as listas do CNES e do DATASUS foram identificados:
- 416 hospitais potencialmente aptos a realizar o procedimento
- 164 hospitais cadastrados no CNES
- 359 hospitais cadastrados no SIH/DATASUS
- 116 hospitais presentes em ambas as bases (CNES e SIH/DATASUS)
- 9 hospitais listados somente pelas Secretarias de Saúde dos estados
Metodologia do novo Mapa do Aborto Legal
- Antes: ligações telefônicas aos serviços cadastrados em bases de dados federais definiam a classificação entre “fazem aborto legal” e “não fazem aborto legal”;
- Agora: a ligação é só uma etapa de confirmação — sem excluir o serviço da lista. E os serviços passaram a ser classificados em três níveis de confirmação: federal (presentes nas bases de dados do SIH/DATASUS ou do CNES), estadual (quando informados pelas Secretarias de Saúde dos estados) e local (confirmados por ligação telefônica ao próprio serviço).
A nova versão do Mapa também tem uma identidade visual mais acessível e com linguagem inclusiva. Além de filtros que permitem buscar os serviços por município, por estado e por número e/ou nível de confirmações.
Com a nova metodologia, o Mapa identificou um aumento considerável no número de serviços disponíveis para realizar o procedimento, passando de 132, em 2022, para 419, em 2025. Mas as diversas dificuldades no acesso a essas informações se acumulam com o passar dos anos.
Em novembro de 2025, está previsto o lançamento da pesquisa completa com mais informações sobre direitos reprodutivos no Brasil. Essa é só a primeira fase do projeto Aborto e Democracia, que, se depender da gente, seguirá até que todas as brasileiras tenham acesso garantido aos seus direitos e atendimento em saúde digno.
O Mapa é mais do que uma lista — é um grito por transparência, dignidade e autonomia. Compartilhe, divulgue, fortaleça essa rede de apoio. Porque informação salva vidas.