Foi assistindo ao documentário Bixa Travesty, da cantora Linn da Quebrada, em dezembro de 2019, que percebi que eu não era uma mulher não feminilizada: eu era um corpo trans.
Como faz falta nos vermos nos lugares, né? Eu só comecei a me sentir representado no audiovisual em 2008, quando assisti a série sapatão The L Word. Em 2020, a série ganhou uma continuação que trazia também pessoas trans. Sempre busquei de forma incansável essa representação. Em Glee, série musical de Ryan Murphy, a encontrei novamente, em 2010. Era outra série da qual os meninos não podiam gostar. Detesto esse pensamento.
Seguia procurando mais representação, mas poucas realmente me representavam. A maioria das histórias era feita de tragédia para os casais lésbicos. Em Orange Is the New Black, vi pela primeira vez uma atriz trans interpretando uma personagem trans. Era Laverne Cox, que deu vida a Sophia por alguns anos, até a série ser encerrada. Um pouco depois, conheci Orphan Black, série em que Tatiana Maslany fazia tudo e todos os personagens. Tinha uma personagem lésbica, que me prendeu até o fim da trama.
Nem cito personagens de homens trans ou pessoas transmasculinas porque as poucas vezes que existiam era transfake – a prática de pessoas cis interpretarem pessoas trans. Recentemente, porém, Elliot Page, um dos meus atores favoritos, contou ao mundo que era trans, a representação e a representatividade que eu tanto precisava na adolescência.
Outras séries que me prenderam por muito tempo são as da Shonda Rhimes: Greys Anatomy e How to Get Away with Murder (essa última com a minha atriz favorita, Viola Davis). Em 2020, conheci uma série que estou amando, Pose, que traz mulheres trans, travestis e pessoas não binárias no elenco (também é uma série de Ryan Murphy).
A (segunda) saída do armário
Não existe um manual para ser uma pessoa trans. Tá tudo bem querer ou não fazer a hormonização. Tá tudo bem querer ou não fazer cirurgias. Tá tudo bem querer ou não se enquadrar em alguns gêneros da binaridade: masculino ou feminino. Tanto que há pessoas trans não binárias (que não se enxergam nem como homens nem como mulheres ou se enxergam das duas formas). Eu optei por querer ambas as coisas, mas isso não me tornará mais ou menos trans do que as outras pessoas.
Ali, eu vi que tinha encontrado o meu lugar, independentemente de qual fosse. De cara, entendi que era uma pessoa não binária. Mas, aos poucos, fui percebendo que homem trans me contemplava mais, pelo menos nesse momento.
Como eu disse no começo, quem vê de fora pode achar que foi algo repentino, mas não foi. Desde meu nascimento, é algo que fica indo e vindo, mas que, em 2017, com o meu livro, se tornou mais presente. Durante muito tempo, pude esconder isso, já que a temática trans fazia parte da minha vida profissional.
Questionaram mais de uma vez se eu era uma pessoa trans nesses anos, desde que me formei, e eu tinha uma desculpa: “Não, eu só pesquiso o tema, porque é minha área de atuação profissional”. Caê mal sabia que, na verdade, isso era ele se preparando para ser quem realmente era. Do alto dos meus 29 anos de vida, então, Caê nasceu. E Caê reivindica o gênero masculino. Tenho construído, aos poucos e diariamente, o homem que quero ser: livre das masculinidades tóxicas estabelecidas.
Infelizmente, precisei de um laudo psiquiátrico para começar a hormonização. Em alguns espaços, isso ainda é exigido. Evoluímos muito, e agora podemos retificar o nome sem esse laudo ou cirurgias, mas para a hormonização precisei desse papel. Consegui o documento em 19 de maio de 2020 e no dia seguinte tive a primeira consulta com o endocrinologista (o médico que me ajuda com o processo de hormonização). Uma coisa importante de entender é que a transição é muito mais interna do que externa.
Enquanto escrevo este texto, já tomei a minha décima dose de testosterona. Minha voz engrossou, meus pelos também, e muita coisa mudou internamente. Como falei, não existe regra para ser uma pessoa trans e a terapia hormonal não deve ser feita como uma obrigação. Faz quem quer, quem se sente confortável com isso.
Em 2021, realizei mais uma meta, a mastectomia (cirurgia de retirada dos seios). Não por odiar o meu corpo, ideia vendida pela cisgeneridade, mas para me sentir mais confortável. Para chegar até aqui, pessoal e profissionalmente, precisei abrir mão de muita coisa, principalmente das minhas relações afetivas românticas. Não dá para estar em uma relação sem se conhecer, se amar, em sua essência. Depois de quatro namoros encerrados nos últimos três anos, percebi isso.